quarta-feira, setembro 19, 2007

Carta

Carta de Caio Fernando Abreu para Hilda Hilst, sobre o encontro com Clarice Lispector


"Hildinha, a carta para você já estava escrita, mas aconteceu agora de noite um negócio tão genial que vou escrever mais um pouco. Depois que escrevi para você fui ler o jornal de hoje: havia uma notícia dizendo que Clarice Lispector estaria autografando seus livros numa televisão, à noite. Jantei e saí ventando. Cheguei lá timidíssimo, lógico. Vi uma mulher linda e estranhíssima num canto, toda de preto, com um clima de tristeza e santidade ao mesmo tempo, absolutamente incrível. Era ela. Me aproximei, dei os livros para ela autografar e entreguei o meu Inventário. Ia saindo quando um dos escritores vagamente bichona que paparicava em torno dela inventou de me conhecer e apresentar. Ela sorriu novamente e eu fiquei por ali olhando. De repente fiquei supernervoso e sai para o corredor. Ia indo embora quando (veja que GLÓRIA) ela saiu na porta e me chamou: - "Fica comigo." Fiquei.

Conversamos um pouco. De repente ela me olhou e disse que me achava muito bonito, parecido com Cristo. Tive 33 orgasmos consecutivos. Depois falamos sobre Nélida (que está nos States) e você. Falei que havia recebido teu livro hoje, e ela disse que tinha muita vontade de ler, porque a Nélida havia falado entusiasticamente sobre Lázaro. Aí, como eu tinha aquele outro exemplar que você me mandou na bolsa, resolvi dar a ela. Disse que vai ler com carinho. Por fim me deu o endereço e telefone dela no Rio, pedindo que eu a procurasse agora quando for. Saí de lá meio bobo com tudo, ainda estou numa espécie de transe, acho que nem vou conseguir dormir.

Ela é demais estranha. Sua mão direita está toda queimada, ficaram apenas dois pedaços do médio e do indicador, os outros não têm unhas. Uma coisa dolorosa. Tem manchas de queimadura por todo o corpo, menos no rosto, onde fez plástica. Perdeu todo o cabelo no incêndio: usa uma peruca de um loiro escuro. Ela é exatamente como os seus livros: transmite uma sensação estranha, de uma sabedoria e uma amargura impressionantes. É lenta e quase não fala. Tem olhos hipnóticos, quase diabólicos. E a gente sente que ela não espera mais nada de nada nem de ninguém, que está absolutamente sozinha e numa altura tal que ninguém jamais conseguiria alcançá-la. Muita gente deve achá-la antipaticíssima, mas eu achei linda, profunda, estranha, perigosa. É impossível sentir-se à vontade perto dela, não porque sua presença seja desagradável, mas porque a gente pressente que ela está sempre sabendo exatamente o que se passa ao seu redor.

Talvez eu esteja fantasiando, sei lá. Mas a impressão foi fortíssima, nunca ninguém tinha me perturbado tanto. Acho que mesmo que ela não fosse Clarice Lispector eu sentiria a mesma coisa. Por incrível que pareça, voltei de lá com febre e taquicardia. Vê que estranho. Sinto que as coisas vão mudar radicalmente para mim – teu livro e Clarice Lispector num mesmo dia são, fora de dúvida, um presságio. Fico por aqui, já é muito tarde.

Um grande beijo do teu Caio"



* Amanhã é feriado por aqui, então até sexta!

6 comentários:

Anônimo disse...

Não tem jeito; EU gosto do seu estilo!

Volto outro dia.

Beijo

Anônimo disse...

Adorei o teu texto. Eu já conheço a tua escrita, impressos neste teu olhar de anos 60. Uma moça marota que sabe com a firmeza de um guindaste segurar uma caneta ou ter à sua frente, sob domínio um computador.

Um beijo
Naeo

Lily disse...

ahh eu já li isso num livro que é meio q uma coletânia de tudo o q o caio escreveu...
mto legal!
adoro ele, a hilda hist e a clarice! rs

bjksss

Lily disse...

Jana, eu tenho 22! :)

Bjkss

Anônimo disse...

Clarice me perturba!
Mto.
Mudei meu blog por problemas técnicos.

bjs

Aline Ribeiro disse...

Uia, que interessante saber mais um pouco da minha escritora favorita. Os textos dela sempre me provocaram uma reação de desespero em suas palavras, agora lendo a descrição de Caio, tudo fica mais claro. Clarice não era normal mesmo! Mas digo isso não no sentido de ser anormal e sim de ser uma pessoa mais que especial.

Sumi daqui, sorry viu?
Senti falta de te ler, voltei a ativa, após alguns tormentinhos...
Bjm